Foto: Arquivo Pessoal
Engenheiro e doutor em Transportes, o professor da UFRGS Luiz Afonso dos Santos Senna coordenou o Plano Estadual de Logística e Transportes (Pelt) para o governo do Estado em 2018, que apontou os gargalos do setor e as soluções. Após a divulgação do programa de concessão de rodovias, na última segunda-feira, que inclui a previsão de duplicar a RSC-287 entre Santa Maria e Tabaí, o Diário ouviu as opiniões de Senna sobre a instalação de cinco pedágios na rodovia para bancar a manutenção e a duplicação.
O pedágio que você já paga e não vê
Senna diz que ainda não teve acesso a todos os detalhes do programa de concessão do governo Leite. Por isso, não se sente confortável para fazer uma avaliação da proposta. Porém, ele defende que instalar pedágios para manter e duplicar a rodovia é a única saída, já que o Estado está quebrado e não tem como fazer isso. Ele disse ainda que, nas audiências públicas, ainda é possível tentar incluir a Faixa Nova de Camobi na concessão para que seja duplicada.
Diário - Em relação à concessão de pedágios feita nos anos 1990, há uma queixa sobre a falta de previsão de duplicações ou obras de melhorias na RSC-287, e que quando a EGR assumiu a rodovia, ela ficou bem ruim. Qual sua avaliação disso?
Luiz Afonso Senna - A EGR cobra pedágio, mas não é uma concessionária típica. Uma concessionária tem um conjunto de obrigações a cumprir, definidas no contrato, e tem um prazo para fazer obras. A EGR não tem. Ela vai fazendo obras à medida que entra dinheiro, muito a reboque das necessidades. O arranjo institucional da EGR é muito precário, para atender e operar uma rodovia. Eu não tenho notícia de que, no final da concessão, tenha sido feito gambiarra ou não ter sido feito o que precisava, mas, se isso aconteceu, a responsabilidade é muito maior do Estado, que é o regulador e dono do contrato. Então, sem alguém não fez, ele não fiscalizou. Mas o arranjo da EGR só se limita a fazer pequenas intervenções e não consegue fazer obras de maior porte porque não tem recursos previstos para isso. Além do fato de que as tarifas ficaram congeladas um tempão e nunca foram reajustadas, que é outra coisa que não pode acontecer numa concessão. Tem um contrato que fixa as regras e reajustes das tarifas, mas tem um conjunto de obras que têm de ser atendidas. Hoje, a ideia é de que os usuários das vias paguem para que tenham uma manutenção e operação da rodovia e, eventualmente, algumas questões de aumento de capacidade, em função da realidade econômica do país e do Estado. É "ou faz isso ou vai se ter estrada que não responde pelos padrões mínimos de segurança". Porque dinheiro público não tem, ponto.
Diário - O programa do Estado apontou que, nos primeiros cinco anos, sejam duplicados os trechos urbanos da RSC-287, de Santa Maria a Tabaí, e que ao final de 11 anos, toda a rodovia, o que ocorreria até 2030. Porém, pelas projeções de aumento de tráfego, o Plano Estadual de Logística aponta que a duplicação de Santa Cruz a Tabaí deve ocorrer até 2024, e que de Santa Maria a Santa Cruz, poderia ser concluída até 2039, quando a rodovia chegaria a seu limite. Poderia haver postergação da duplicação para reduzir a tarifa?
Senna - Não conheço o estudo (apresentado na segunda), mas, em tese, duplicar a rodovia de ponta a ponta, quando a gente trabalha com fluxo de caixa, que é como o investidor pensa, significa o seguinte: ele fará a conta se a tarifa cabe para cobrir esses custos. Sempre que tu fazes número elevado de obras no início, a tarifa fica muito alta ou gera problemas. Dilma propôs em nível federal que boa parte das rodovias que estavam sendo concedidas, na época, fossem totalmente duplicadas em 5 anos. Aí o que aconteceu? Todas as empresas estão quebradas e devolvendo concessões. Porque isso impacta numa tarifa muito alta. Estou falando em tese, pois ainda não conheço o estudo. Mas, em tese, talvez para baratear a tarifa, não precisaria fazer tudo (duplicação total) tão rápido.
Diário - A questão é se a sociedade estará disposta a pagar mais para ter como retorno duplicação total em 11 anos. Por isso que haverão as audiências públicas para debater?
Senna - Sim, é preciso ouvir a sociedade. Até porque o Rio Grande do Sul não tem um histórico muito amigável de concessão. A gente é conhecido no país por ser contra concessão. Já tivemos concessões e teve um trabalho permanente contra. Mas, por outro lado, a gente tem de fazer uma proposta de concessão que caiba dentro da capacidade e da disponibilidade de pagar das pessoas. Se ficar muito cara, pode haver problemas políticos e de aceitação. É um grande desafio que o governo tem pela frente. Mas realmente as audiências públicas ajudam a esclarecer. Foi o que aconteceu, por exemplo, com a BR-386 (Canoas a Carazinho). Chegou-se a um grande consenso e ninguém está falando que é cara (a R$ 4,30). O estudo inicial já teve um teto e, na licitação, como teve concorrência, teve queda de 40% no valor da tarifa. Ficou uma tarifa boa, é raridade aqui no Estado as pessoas gostarem de pagar o valor definido.
Diário - Nas audiências públicas, pode-se chegar à conclusão de que não é preciso duplicar toda a RSC-287 em 11 anos? O governo pode mudar o prazo?
Senna - Pode. As pessoas podem dizer: "Está caro". E uma das formas de se baratear é rever o fluxo de caixa e realocar o período e o tempo das obras. O propósito da audiência é escutar a sociedade e ver queixas e elogios, e incorporar no projeto. Claro que a definição final é do governo, mas se ele não quiser ter muito problema no futuro, é melhor ouvir bem a sociedade.
Foto: Gabriel Haesbaert (Diário)
Diário - Se a comunidade optar por pagar menos, tecnicamente, seria possível duplicar os trechos urbanos e, nos locais onde ainda não há urgência de duplicação, fazer terceiras faixas para desafogar o trânsito de maneira que essas terceiras pistas possam ser aproveitadas futuramente para a duplicação?
Senna - Aí, depende muito de como o projeto for elaborado. Em algumas circunstâncias, fazer uma terceira faixa não significa que já fez meio trabalho para duplicar, porque o eixo da rodovia às vezes muda. Não é tão trivial assim, depende do caso.
Diário - Outra saída para baratear seria duplicar menos trechos no início, pois ao duplicar as áreas urbanas em 5 anos já vai resolver boa parte dos problemas de trânsito?
Senna - Sim. É preciso ter a compreensão do que cabe na tarifa e o que a demanda exige.
Diário - Se for mal feito, pode ter três consequências: ou a tarifa vai ficar muito cara, ou a concessionária pode quebrar ou devolver a rodovia, ou ela pode não cumprir o contrato, como ocorreu em Minas e São Paulo no governo Dilma, em que duplicaram bem menos do que estava previsto?
Senna - Sim. Hoje, governo e organismos de financiamento estão muito mais pé no chão do que estavam naquela época. E pode acontecer uma quarta opção: não ter empresas interessadas na concessão. Ou aparecer interessadas mal-intencionadas, que pegam e depois dão um jeito.
Diário - É ilusão achar que pode haver deságio (queda) de 40% do valor máximo da tarifa e o pedágio cair do teto de R$ 5,93 para R$ 4 na RSC-287, como crê o governo? Se não tiver fluxo de veículos para manter a receita, ou não vai haver interessados ou pode dar esses outros problemas?
Senna - Sim. Mas o governo federal passou a criar mecanismos para evitar que ocorram deságio irreais (empresa que ofereça tarifa muito baixa só para ganhar a licitação). A partir de um nível de deságio, o governo exige aumento do aporte de capital da empresa. Se vai fazer um lance ousado, quero saber se você tem bala na agulha e capital para garantia. É uma forma para evitar que aventureiros ganhem e, depois, não construam as obras.
Diário - Os erros do passado em relação a pedágios em rodovias estão ajudando a corrigir os problemas para fazer esses novos contratos?
Senna - Sim, e não foi por falta de erros. O aprendizado é grande. A gente errou muito, no Estado e no país. Agora, a gente tem a chance de montar projetos muito mais robustos do que aqueles iniciais, quando estava todo mundo aprendendo.
Diário - Um erro do último contrato de pedágios na RSC-287, nos anos 1990, foi de não prever duplicações?
Senna - Não sei se foi erro. Foi a fotografia do momento. A gente tem de entender qual era a realidade econômica do país nos anos 1990. O pessoal dizia a TIR (Taxa Interna de Retorno do projeto de concessão) era muito alta, de 17%. Mas qual era a Selic? 22%. Qual é o empresário que entra num negócio assim, num momento extremamente hostil em termos econômicos? E toparam fazer. Por outro lado, o programa não era muito ambicioso de fazer grandes duplicações, mas o pior de tudo ocorreu e poucos falam. Partidos de direita e de esquerda passaram pelo governo e todos deram contribuição para prejudicar o contrato. Uma das coisas foi, em vez de dar os reajustes previstos pelo contrato, tirarem obras. As poucas que tinham. Então, a responsabilidade foi dos governos. Ninguém era muito convicto das concessões. O projeto não era muito ambicioso, tinha pouca obra, mas tinha algumas. O governo tirou obras e piorou muito a percepção dos usuários sobre os pedágios.
Diário - Em termos de logística e segurança de tráfego, quais os ganhos que haverá com a concessão de pedágios e a duplicação da RSC-287?
Senna - No momento em que você duplica e faz terceira faixa, você reduz a probabilidade de acidentes. O grande problema é a ultrapassagem mal feita. Então, reduz dramaticamente o risco e os acidentes. Segundo ponto: a rodovia vai ter mais capacidade, os veículos vão andar melhor e vai reduzir bastante o tempo de viagem. Terceiro: hoje há trechos bem ruins, então, vai reduzir o gasto com manutenção, com pneu e suspensão estragados. O grande benefício é nessas três coisas.
Diário - Na sua avaliação técnica, para o usuário que vai pagar, se o pedágio tiver um valor razoável, esse custo se paga diante dos benefícios que terá com a duplicação?
Senna - Sem dúvida. Hoje, sem a duplicação, o custo com o tempo que tu perdes e a questão do acidente é um risco muito grande que se corre. E com essas concessões há também serviços acoplados, que não sei se vão estar contemplados. São serviços de guincho quando estraga o carro, de ambulância, que são serviços que hoje você não dispõe. Mesmo com a EGR, são serviços precários hoje, com prefeituras, de forma muito amadora.